A VONTADE DE MORRER

Antônio LaCarne
3 min readJun 11, 2021

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Nina Roder

Como não permitir que as próprias esperanças saltem do último andar de um prédio imaginário? — é o que me pergunto todos os dias enquanto lavo a louça, ou enquanto passeio com o meu cachorro, ou quando tento fugir dos cumprimentos, entre um conhecido e outro, fingindo-me de desentendido nas escadas, ou no hall de entrada ou de saída — ou em qualquer momento em que o pensamento busque uma espécie de solução, salvação, ou golpe de misericórdia que reverta o momento, que reverta o instante.

Se viro o meu rosto e se morro de vergonha, é porque desejar bom dia aos vizinhos já não é o suficiente.

Por isso penso em Hanio, personagem do romance Vida à venda de Yukio Mishima que, sem qualquer motivo aparente, decide tirar a própria vida, até o surgimento de uma proposta inusitada de um estranho, distraindo-lhe de seu objetivo mortal. Penso em Hanio porque, como o próprio autor descreve, “nada em sua mente estava definido” — nem a própria morte, muito menos a vontade de morrer. Desinteressado de si mesmo, o personagem tornou-se cobaia da própria negação em relação à existência. A morte é uma vontade, não um desejo ramificado na construção de uma experiência real ou metafórica. Para ele, a morte passa a ser banal, e as suas consequências, esdrúxulas.

Mas não é sobre o suicídio como fuga que tento desvendar as ambiguidades do personagem. Muito me interessa a investigação da morte simbólica, do ritual autônomo de desaparecimento, da contrariedade à espetacularização do momento. Nem todo instante é digno de nota. Nem toda experiência merece registro.

Resta a percepção em frangalhos que, diante da morte corpórea versus a materialização da descrença no que é humano, tem se descortinado outro espetáculo social: a arte de ignorar, a arte de minimizar as dores e as vivências alheias. Viver sob tal insensatez, construída ou por tabela, provoca o seguinte questionamento: Hanio é quem sabe das coisas? Ou carregar nas costas a morte simbólica como mecanismo de defesa finda numa experiência existencial mais intolerável?

Estes poucos parágrafos indicam a triste ilusão de que o mundo precisaria mudar para que pudéssemos caber nele — assim afirmou Clarice em uma de suas crônicas. Então eis uma especulação curiosa: o que podemos concluir sobre os indivíduos que não anseiam um novo mundo revertido em possíveis positividades? Quais mudanças trariam significantes boas novas? Quais condutas menos animalescas e mais bem-vindas definiriam a espécie humana como superior?

Supor tais possibilidades é o mesmo que crer em milagres. Ou duendes. Ou que Bolsonaro tem um cérebro. O homem nasceu, cresceu, desenvolveu-se e criou a palavra UTOPIA (escrita aqui em maiúsculas, lógico).

O tempo passa e os terrores noturnos, diurnos, transcendentais são os mesmos.

Por um momento deixo estes parágrafos de lado e vou à janela. A cidade parece tranquila, mas as aparências enganam. Leio e releio o que acabei de escrever em busca de um fim, de uma frase que soe minimamente esperançosa. Uma frase que me permita sair discretamente pela porta dos fundos. Todas as esperanças unem-se numa só, por mais subjetivas que sejam, por mais que pessoais e intransferíveis. Resta-me finalizar este texto deixando o meu pensamento suspenso. O calor é insuportável. Mudo de assunto. É necessário ressignificar nossos próprios mistérios.

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